quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Manu

Ela morreu aos poucos, esquecida e desprezada pela minha "falta de tempo". No começo, era apenas uma diarreia, consequência do fermífugo. Mas a diarreia não passava e a cada dia ela se alimentava menos e se enfraquecia mais. No fim de semana, meu pai disse que ela estava muito tristinha. Trouxe-a para cima da laje e eu fiquei olhando aquele serzinho preto, pequeno, que fazia com que qualquer movimento parecesse um esforço desumano. E era.

Ela apareceu na rua do meu amigo, que por um milagre ou por consciência, me ligou para saber o que fazer com aquele filhote abandonado. Sua barriga era enorme e seus olhos cinzentos estavam cobertos de remelas. Dei-lhe um banho, comida e água e tentamos ligar para os pet shops disponíveis, para saber se alguém poderia adotá-la, mas eu tinha esquecido que ninguém quer um filhote de vira-lata, provavelmente cheio de vermes e fêmea, ainda por cima. Um dos veterinários para quem liguei sugeriu que eu chamasse o Centro de Zoonoses. Não acreditei em sua sugestão e perguntei "Você quer dizer a Carrocinha?" "Sim." "Mas você sabe que eles vão matá-la, não sabe?" "Sim, sei." Desliguei o telefone e parei de oferecer a cachorrinha em sacrifício.

No dia seguinte, meu amigo me ligou, dizendo que tinha ligado para mais 7 pet shops e ninguém podia/queria ficar com ela. Ainda por cima, sua mãe disse que se chegasse em casa e encontrasse um cachorro, o mataria a pauladas. E o pior é que era verdade, pois ela já fez isso antes.

No fim das contas, ela veio parar em aqui casa e ganhou um nome, um lar temporário, amigos temporários e uma vida temporária. Engordou, ganhou pêlos novos e brilhantes, cresceu , conquistou seu próprio espaço na garagem e nos nossos corações. Sempre que eu chegava da faculdade, era recebida pelo imenso Jack e por aquela figurinha preta, que surgia por entre os carros na garagem.

Mas nas últimas semanas ela passou a aparecer cada vez menos, ficando sempre deitada no puff do Jack. Às vezes abanava o rabo, mas não vinha me receber. Com o passar dos dias, ela se mexia cada vez menos até parar de comer. Minha mãe começou a alimentá-la com soro caseiro e ela parecia estar melhorando. Mas ontem à noite, quando cheguei da faculdade, o Jack estava desesperado na garagem escura, tentando me dizer alguma coisa. Como as luzes estavam apagadas, não consegui encontrar a Manu, mas o Jack me levou até ela. Coloquei a mão em sua cabeça apenas para me certificar de que ainda estava quente e subi para o meu quarto. Alguns minutos depois, comecei a ouví-la chorar. Fui até a garagem e a trouxe para o meu quarto. Minha mãe levantou e me ajudou a dar o soro com a seringa, mas ela parecia cada vez mais fraca. Trouxe-a para dormir em meu quarto e fazia carinho em sua cabeça a cada vez que ela chorava.

Às 4h30 da manhã tentei fazer com que ela tomasse mais um pouco de soro e foi só aí que percebi que, na verdade, ela estava inconsciente. Sua gengiva estava esbranquiçada, sua língua tinha encolhido dentro da boca, seus olhos estavam virados e ela já não tinha reflexos lógicos, embora chorasse e tentasse latir a cada vez que eu chamava seu nome. Seu batimento cardíaco acelerou-se e pensei que ela fosse morrer sufocada, mas logo seu coração começou a bater cada vez mais devagar. Tentei masseagar seu peito, na esperança de que seus batimentos cardíacos voltassem a um ritmo normal, mas tudo que senti foram batidas cada vez mais raras, até que seu coração parasse de bater por completo, ali, na minha mão.

Chamei minha mãe que logo ao vê-la, disse "já está morta", cobrindo-a com um pano e voltando a dormir. Eu voltei a massageá-la, na esperança de que ela pudesse voltar à vida e tive muita vontade de acreditar em deus, para poder pedir um milagre. Seus latidos cada vez mais frágeis e os espasmos que mexiam seus membros me davam forças para continuar tentando. Uma vez eu tinha visto num programa de televisão que em alguns velórios os cadáveres ainda se mexiam, causando pânico nas pessoas. Em mim só causava esperança. Desejei ardentemente fazer um curso de veterinária, para evitar que mais cachorros morram assim, não minha mão. De repente me senti tonta, comecei a suar frio, a sentir enjôo, não tinha forças para continuar de pé e achei que fosse desmaiar. Será que é essa a minha maneira de lidar com a morte? Será que é assim que me conscientizo? A verdade é que caí na cama e acordei sem a Manu no meu quarto. Não tive coragem de perguntar à minha mãe o que ela tinha feito com o corpo, mas imagino que tenha enterrado num terreno baldio próximo à casa da minha prima. Minha tristeza era tão exata e tão inquestionável que não precisou recorrer ao recurso das lágrimas. A morte é irremediável. Minha perda também. As lágrimas não dariam conta da tristeza que senti ao ter em minhas mãos um coração que, aos poucos, parava de bater. Também não acho que essas palavras darão conta de expressar meu sentimento de culpa e de impotência.

E eu só queria que ela fosse feliz...

Um comentário:

Mayara Novais disse...

Lidar com a morte é uma das piores sensações pela qual alguém passa; e ainda é pior quando é com alguém ou algo que se ama...

Eu sei bem a dor que você sentiu, pois faz pouco tempo que a Suzi morreu...:( Eu não estava em casa, então não vi seus últimos momentos, mas ainda doi muito quando chego em casa e não sou recebida por ela, ou saber que enquanto eu estiver fora não terá mais o meu bichinho me esperando...

Acho que nunca aprenderemos a lidar com a ideia da perda...

Bjo