quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A meia e o sábado

Enquanto lavava a louça do café, fui pega de surpresa pela lembrança de uma pessoa que já não via há algum tempo. A imagem veio na minha cabeça de uma forma tão instintiva que não soube relacioná-la a qualquer elemento da situação que vivia. Inclinei a cabeça para o lado e com os olhos fixos no nada que envolvia os objetos da cozinha e se expandia em direção ao mundo lá fora, pensei rapidamente "ele nunca mais apareceu aqui". E isso veio como um ultimato, como a conclusão de alguma coisa que eu julgava constantemente incompleta.

A lembrança se foi antes que sentimentos incômodos pudessem ser retomados e eu segui com a inutilidade do meu sábado, sem saber ainda se continuaria a leitura de um livro ou se daria banho nos meus cachorros. Antes de conseguir decidir, me vi diante do computador fazendo qualquer coisa inútil na internet e mais uma vez lamentei minha mediocridade e senti pena do Graciliano Ramos e do seu profundo Infância, que agora se viam obrigados a disputarem minha atenção com um objeto tão frio quanto os tempos modernos que o criaram. Fui interrompida pelo toque da campainha e pela desobediente inquietude do meu coração Num movimento automático, tirei o pijama e procurei dar uma ajeitada no cabelo. Ao trocar de roupa, me senti tão fútil quanto aquelas mulheres do século XVIII que apertavam as bochechas para parecerem rosadas na presença de seus pretendentes.

Pude ouvir seus passos pelas escadas e mais tarde, sua voz jovial e delicada. Na tentativa de ignorar a estranheza da situação, liguei o rádio. Minha esperança era que as palavras desafinadas de Conor Oberst me dissessem o que fazer, me mostrassem qual caminho seguir. A música se misturava às vozes que vinham da cozinha e tudo que eu conseguia ouvir era um monte de ruídos ininteligíveis, pois ainda sem querer, queria prestar atenção nas duas coisas ao mesmo tempo. No curto silêncio que separa uma canção da outra, ouvi minha mãe perguntar "E você pretende se casar quando, L.?" Cada parte do meu corpo parou para ouvir atentamente à resposta, mas meus ouvidos foram inundados pela introdução barulhenta de Four Winds e por um momento cheguei a amaldiçoar Conor Oberst.

Desliguei o rádio, concentrei todos os meus esforços na criação de uma cara cínica, respirei fundo e testando a minha capacidade de parecer indiferente, disse ao espelho "Oi, L. Tudo bem?". Não me achei muito convincente, mas o constrangimento duraria apenas alguns segundos. E se alguma coisa me denunciasse, tudo que eu tinha que fazer era evitar aqueles olhos.

Ele estava sentado de costas para o corredor e antes de finalmente entrar na cozinha, observei com ternura aquela figura que durante muito tempo foi a alegria da minha vida. Contra minha vontade, um sorriso triste surgiu em meu rosto. Fechei os olhos, concentrei meus esforços na farsa e disse, sorridente, "Oi, L! Tudo bem?". Beijá-lo no rosto foi inevitável e eu senti mais uma vez a textura daquela pele tenra e quente. Ri por dentro. Algumas coisas nunca mudam.

(E Conor Oberst insistia em cantar em sua voz desafinada "Yeah, you still kiss me, but it's just on the cheek").

Fui até a sala, troquei algumas palavras com meu pai, coloquei água para ferver e voltei ao meu quarto. A atmosfera de desordem causada por aquela visita incorporava todas as minhas tentativas de provar que toda aquela preocupação era ridiculamente constrangedora e que não passava de um reflexo da ausência de eventos na minha vida.

L. e eu não temos filhos, mas temos um cachorro que desempenha muito bem esse papel, pois tem sido a principal desculpa para nossos diálogos seguros e vazios. Enquanto eu preparava o molho do meu macarrão, L. se encantava com todo e qualquer movimento daquele cachorrinho mimado e fazia questão de compartilhá-los comigo. Pousei minha mão sobre a cabeça do Mané e senti aquela mão quente que, sob a desculpa de agradar o cachorro, acabou envolvendo a minha. Não levantei os olhos. Tudo que eu via era aquela imensa aliança prateada. Puxei minha mão rapidamente.

A preguiça da tarde pós-almoço invadia cada canto daquele sábado de calor, e logo meu pai estava dormindo em seu quarto. Não sei onde minha mãe e irmão tinham ido, só sei que restaram apenas L. e eu na sala, resistindo bravamente à vontade de deitar no chão e dormir. Ele parecia extremamente à vontade, esparramado no meu sofá e me contando seus planos, enquanto eu, de pé, atrás do outro sofá, parecia um soldado que se crê protegido por uma trincheira. Se eu estivesse interessada em ilusão, poderia ir além dessa cena e dizer que ele estava de coração aberto, enquanto eu me fechava cada vez mais dentro de mim. Mas a verdade é que ele estava sendo apenas sociável, uma habilidade que invejo muito.

Cada fragmento de conversa evidenciava mais e mais as diferentes pessoas que havíamos nos tornado. Seus planos eram absolutamente incompatíveis com os meus e eu experimentava uma estranha sensação de alívio. Quando eu já estava quase convencida de que todo aquele amor tinha se perdido para sempre em algum buraco negro do passado, ele disse, com um olhar distante, "Acredita que eu ainda tenho aquela meia?". Eu sabia do que ele estava falando, mas precisava de tempo para pensar em uma reação, então perguntei "Meia? Que meia?". Ele se limitou a responder "Aquela meia...que o Rex rasgou, não lembra?". É claro que eu lembrava. O "acidente" aconteceu há anos, na noite em que tivemos nossa primeira briga como namorados. Estávamos na garagem de casa e eu não lembro qual era o motivo da discussão, mas a questão é que, naquela época, L. tinha o hábito de andar de um lado para o outro quando estava nervoso ou irritado. Meu cachorro Rex ainda não tinha se acostumado à ideia de que agora eu tinha um namorado, então às vezes se enfiava entre L. e eu no sofá, ou rosnava sempre que ele parecia estar planejando algum movimento em falso. Já cheguei a pensar que o Rex tinha sido treinado pelo meu pai para garantir que sua única filha não caísse na conversa mole de qualquer rapazinho bonitinho. Independente dos motivos, Rex estava sempre ali, pronto para me defender. E naquela noite não foi diferente: enquanto L. reclamava, falava rápido e andava de um lado para o outro, Rex aguardava o momento certo para sair debaixo do carro e morder aquelas pernas finas que desfilavam à sua frente. E foi assim que a tal meia acabou rasgada. Aquela lembrança fez com que compartilhássemos um riso confidente e eu acabei aprendendo que pode até ser possível deixar uma pessoa, mas nem sempre é possível tirá-las de nós.

L. decidiu ir embora antes que o "encanto" passasse de vez. Ao chegar na garagem, lembrou-se que havia deixado a chave do carro na cozinha e subiu correndo para buscá-la. Voltou ofegante, a escada parecia não ter fim. Disse que seu coração estava disparado e pediu que eu colocasse a mão em seu peito e o sentisse, mas acho que percebeu o erro que estava cometendo, pois mudou de assunto rapidamente. Mesmo depois de todos esses anos, alguns resquícios do que um dia chamamos de amor insistem em aparecer para nos confundir, constranger, desarmar.

Abri o portão e quando beijei seu rosto ao me despedir, fui surpreendida por um abraço intenso, apertado, possessivo. Cheguei a pensar que ele queria me dizer alguma coisa e que na esperança de que as palavras surgissem milagrosamente, me prendeu em seus braços. Tentei ver em seus olhos as palavras que sumiram, mas não tive coragem de encará-lo.

No fim, ele disse "Até mais, A. Até um dia" e entrou em seu carro, em direção àquela cujo nome está gravado em sua aliança. Duvido que ela seja capaz de ler o que está escrito naqueles olhos ou de ouvir o que ele diz com o coração.