domingo, 25 de janeiro de 2009

Eu quero me apaixonar por você

(Então, por onde a gente começa?)

No ano passado li um conto em que o autor dizia que contaria uma história, mas não tinha como precisar até que ponto ela era verdadeira, pois "uma vez guardadas na memória, as histórias são contaminadas por outras lembranças e por sonhos". A "história" que vou contar é, na verdade, o relato de um sonho que tive numa dessas noites passadas. No entanto, assim como o autor, eu não sei precisar o que realmente sonhei e o que eu apenas gostaria de ter sonhado, pois sonhar é uma forma de viver alguma coisa, principalmente os sonhos noturnos, que são mais vívidos e involutários. Mas acho que não importa, afinal, sonhos são confusos e relatá-los do jeito que realmente ocorreram poderia torná-los malucos e ninguém entenderia por que este sonho, em particular, foi tão especial para mim. Por isso, algumas coisas ditas aqui são vontades e desejos antigos, que preencherão as lacunas que os sonhos noturnos costumam deixar. Mas não tem problema, pois essas lacunas também serão preenchidas com sonhos, mas com os que são sonhados durante o dia, quando encosto a cabeça na janela do trem e vejo a paisagem ir embora; quando me sento no corredor da faculdade e vejo a vida dos outros acontecer; quando espero alguma coisa maravilhosa acontecer no ponto de ônibus; quando abro a cortina da minha janela e fico parada, olhando as casas e o mundo lá fora; ou quando apenas ignoro a vida que me rodeia para viver aquela que eu realmente gostaria de viver.

Eu estava sentada no banco dos fundos de um ônibus, por volta das 18h de um dia de horário de verão. Ao meu lado, dois garotos conversavam sobre coisas interessantes e engraçadas. Um deles era fotógrafo. Eu não conseguia não prestar atenção na conversa deles. Estavam empolgados e o fotógrafo defendia suas idéias com argumentos corajosos e vorazes, ele tinha que ganhar aquela discussão. E então ele disse alguma coisa muito engraçada e de repente minhas mãos tentavam abafar uma risada intrometida. O fotógrafo então virou-se para mim e disse:
- Pode rir, Andréa.
A vontade de rir passou e eu fiquei olhando para aquele rosto tão estranhamente familiar. Passávamos pela rua do cemitério, num bairro próximo ao que eu passei 12 anos da minha vida. A rua agora parecia infinita e tudo que eu via era o cemitério sendo engolido por um céu borrado de manchas cor-de-rosa e alaranjadas, que transformavam uma paisagem normalmente mórbida e sombria em alguma coisa próxima de uma pintura impressionista. Os olhos daquele garoto pareciam me dizer coisas que eu, inutilmente, tentava entender, pois ele sabia de coisas que eu sequer ousaria sonhar.
- Como você sabe meu nome?
- Você não se lembra de mim?
- Não...
- Nos conhecemos numa festa quando tínhamos uns12 anos de idade. Prometemos que um dia ficaríamos juntos. Acho que estávamos esperando o momento certo para viver aquele sentimento que tinha nascido tão precocemente, numa hora tão errada.
Então eu compreendi porque tive a sensação de que os olhos deles me diziam outras coisas. Embora ele devesse ter a minha idade, sua alma era muito mais velha que a minha.
- Desculpe...mas eu não conheço você. Nem sei seu nome.
Então ele ficou em silêncio, começou a encarar o vazio do corredor e disse, sem me olhar:
- É...foi uma bobagem minha pensar que você ainda se lembraria disso após tantos anos...
- Me lembrar do que?
Ele me olhou mais uma vez com aqueles olhos delatores, que gritavam algum segredo que sua boca não podia pronunciar.

De repente, como acontece nos sonhos, eu já não estava mais no ônibus, estava na frente de um bar ou padaria, ainda na mesma rua do cemitério. O fotógrafo e seu amigo estavam sentados no degrau da escada e eu o ouvi dizer que tinha mentido pra mim. Aproximei-me dele, que levantou a cabeça e ficou esperando que eu dissesse alguma coisa:
- Sabe qual é o problema de vocês, fotógrafos? – perguntei sem realmente esperar uma resposta. – Vocês vêem o mundo apenas por suas perspectivas, ignorando as dos outros. Por exemplo, essa geladeira de coca-cola atrás de você. Se você fosse fotografá-la, ressaltaria pontos diferentes dela, coisas que eu nunca notaria, coisas que apenas você seria capaz de ver, de acordo com sua concepção de mundo. Talvez ela nem fosse mais uma geladeira, talvez o seu olhar sobre ela a transformasse numa outra coisa, a desligasse totalmente da idéia de uma geladeira com coca-cola. Seria, um pouco, como brincar de Deus.
Seu amigo assentia com a cabeça, mas não me olhava.
- Desculpe...eu não devia ter "mentido" pra você...mas eu não sabia como te dizer de outra forma. Eu nunca sei agir da forma “convencionalmente correta”...
- Não...tudo bem....Eu não fiquei chateada. Na verdade, entendo você. Eu também vejo o mundo apenas pela minha perspectiva. A única diferença entre nós é que você fotografa e eu escrevo. Se eu fosse escrever sobre essa geladeira, talvez ela se tornasse outra coisa também, talvez eu também fosse capaz de fazer com que ela se transformasse em algo novo, completamente diferente do que era antes. Tudo dependeria do que ela significasse pra mim. Somos sonhadores. Você e eu. Fadados à incompreensão.
Ele levantou a cabeça e sorriu. Era um sorriso de cumplicidade.
- Onde eu posso te encontrar? - os olhos dele tinham uma esperança comedida, como alguém que soubesse que estava novamente no lugar certo, mas na hora errada, e se resignava com a idéia de ter que esperar mais algum tempo até que essa "hora certa" (se é que existe tal coisa) finalmente chegasse.
- Lá na Letras, na USP. Mas não agora, estou de férias.

E acordei. Acordei encantada com isso. Pensando em onde encontrar esse tal garoto. Embora eu continue sem saber como é que ele sabia meu nome, eu sinto que minha missão só será cumprida se eu conseguir encontrá-lo. Aliás, mais do que encontrá-lo, eu preciso reconhecê-lo.