segunda-feira, 6 de julho de 2009

Júlia


O relógio marcou 15h05. Ela estava atrasada. Por cima das casas, da janela do meu quarto, observava a rodoviária. A tarde era quente e o nada parecia tremer com o calor. Meu coração palpitava indecentemente, mas minha cabeça tentava conter a vontade de descer e esperar por ela no terminal. E eu poderia, se quisesse. Ela não me reconheceria, mas tive medo de que meus próprios sentimentos me denunciassem e eu não conseguisse impedir que meu olhar traiçoeiro dissesse “aqui estou”. Se isso acontecesse, esses mesmos olhos teriam que ver um amor tão puro e verdadeiro se desmanchar à sua frente, dando lugar à decepção e a um ódio magoado. Minha perna não parava de tremer. Era sempre assim quando me via numa situação de ansiedade. Lembro quando estava na escola e tinha escrito em minha perna a cola para uma prova, mas não consegui utilizá-la porque não parava de tremer. Ela sentia a mesma coisa quando nervosa, e essa foi uma das muitas coisas que tínhamos em comum e fez com que nos sentíssemos duas pessoas que foram encontradas em meio a um mundo de estranhos. Por que eu deixei que ela viesse até aqui? Durante todos esses anos consegui mantê-la distante sem que isso me custasse muito trabalho. Mas sua insistência libertou em mim algo que eu jurava não existir, algo que à custa de muito esforço eu sufocava em meu interior, que eu buscava de todas as formas silenciar com falsos moralismos, com idéias religiosas nas quais eu nunca acreditei de fato, e acima de tudo, com o medo da reprovação de meus pais, do olhar de vergonha de minha avó, do afastamento de todos os meus amigos.
Contra todos os meus esforços, seu amor ia aos poucos encontrando fendas em mim, fraquezas, e se estabelecendo dentro de tudo aquilo que eu era. Quando me dava conta, estava me acabando de ansiedade, esperando por uma carta sua, sentindo um misto de vazio e ódio quando ela não chegava. Certa vez ela me disse que entendia que eu não a amava, que sabia que eu era gay e não poderia ficar com ela, mas mesmo assim, ela queria me ver apenas uma vez, saber que eu era real. Depois, se vestiria de preto e se denominaria viúva “Seria interessante, não, Júlio? Uma viúva precoce. Bastante romântico.” Sim, realmente, seria bastante romântico. Mas ela sequer imaginava o quanto estava enganada...
O fato é que sua fé no amor acabou me atingindo de uma forma que, num impulso de coragem irresponsável, as letras tortas por causa das mãos trêmulas, escrevi o seguinte bilhete “Tudo bem. Venha me ver no próximo feriado. Meu endereço é o do envelope” e pela primeira vez deixei de morar na caixa postal, como ela dizia, e passei a ter uma casa comum, como todas as pessoas, um apartamento 23 de um quarto andar.
E agora lá estava eu, num dos quartos desse apartamento. Uma de minhas unhas foi roída ao ponto de começar a sangrar, e então eu vi ao longe aquele ônibus de viagem, aquele que só passava duas vezes por dia e que vinha sempre de algum lugar bem distante. Dificilmente se atrasava em dias de sol, mas hoje, só para prolongar a ansiedade de meu coração, atrasou-se quase 20 minutos. Minha mente se achava parada na janela, enquanto meu corpo desligava-se de mim e descia correndo pelas escadas. Sabia que ela nunca mais me perdoaria, mas eu também não me perdoaria se não a visse pelo menos uma vez. Corri por entre os carros e encostei-me à parede da plataforma. Minhas mãos suavam e o frio na barriga chegava a causar náuseas. O ônibus parou na plataforma. Estava tão ofegante quanto eu. A cada passageiro que desembarcava, o mundo parecia me engolir e sufocar e eu queria ter o poder de simplesmente fechar os olhos e voltar para a segurança do meu quarto, mas não conseguia me mover. Finalmente, quase uma das últimas pessoas a descer, veio ela. A blusa amarrada na cintura – provavelmente fazia frio em São Paulo – a expressão de cansaço de quem passou oito horas em um ônibus num calor de 27º, o olhar tristemente perdido, de quem não sabia onde estava e nem porquê. Desceu. Parou na plataforma, abriu a mochila e pegou a garrafa com água. Bebeu um pouco. A água escorria-lhe pelo pescoço e desaparecia no decote de sua blusa. Meu corpo arrepiou-se e minha mente foi inundada de pensamentos que iam do amoroso ao sujo. Guardou a garrafa na bolsa, colocou-a no chão, e olhou em volta, desolada. Não havia nenhum sinal de um garoto alto, magro e de cabelos pretos e compridos. As pessoas iam e vinham, enquanto ela permanecia ali, imóvel. Finalmente consultou o relógio e seus lábios se contraíram numa expressão de decepção. Deu de ombros e ergueu as sobrancelhas. Sentou-se no banco para procurar o número de telefone que eu havia lhe dado. Recebeu a mensagem de que o número chamado não existia. Era falso. Cansada e vencida, deixou-se cair no banco, fatalmente a meu lado. Os olhos distantes, marejados. Eu quis dizer-lhe a verdade, mas alguma coisa mais forte me silenciava, alguma coisa que parecia ter arrancado minhas cordas vocais, me impedindo de dizer qualquer coisa. Qualquer coisa. Ainda que fosse uma outra mentira. Levantou-se, foi até o guichê e pude ouvi-la dizer “A que horas sai o próximo ônibus para São Paulo?”. Apanhou a carteira, pagou pela passagem e sentou-se em outro banco. Partiria dentro de algumas horas. De repente, vi que ela me olhava com profunda insistência, seu olhar acusativo e esperançoso desafiava minha audácia. Não sei como ela pôde ter desconfiado, e foi aí que percebi que não foram necessariamente meus olhos que me denunciaram, mas minhas pernas, que tremiam incessantemente, sem que eu me desse conta. Caminhou em minha direção. Eu me sentia desaparecer no banco:
- Moça, por favor, qual é o seu nome?
Meu coração gritava “Júlia”, mas minha boca estava preparada para outra mentira:
- Débora.
Ela não acreditou:
- Débora? Tem certeza de que não é você o Júlio?
- Desculpe, moça. Mas não sei do que você está falando... – embora meu cinismo fosse uma de minhas características mais peculiares, fui covarde o suficiente para não olhá-la nos olhos. Por alguns instantes ficou parada diante de mim, incrédula. A boca aberta e a cabeça visivelmente confusa. Em seguida voltou ao outro banco e chorou. Não sei dizer se chorou por não ter me encontrado ou se aquilo era o resultado decepcionante de me conhecer. Acho que nunca saberei... A verdade é que eu voltei para a janela do meu quarto e lá fiquei até às 17h45, horário de saída do ônibus para São Paulo. Mesmo longe pude vê-la arrastar-se para dentro do ônibus. Parecia outra pessoa, alguém que perdeu a vida, mas conservara as funções do corpo, e cheguei a ficar realmente preocupada, pensando se ela conseguiria chegar em casa sozinha. O ônibus partiu e ela foi embora. Eu sabia que era para sempre. Não se deu o trabalho de me escrever para tirar satisfações. E também eu não escrevi para pedir desculpas. O tempo passou e deve tê-la curado de um amor tão proibido. Mas parece que algumas pessoas são imunes ao tempo, afinal, até hoje me pergunto se seria possível que em algum lugar de seu íntimo, de seu instinto, em seu amor imenso e acolhedor, ela poderia amar uma mulher.

2 comentários:

Mayara Novais disse...

Ficou muito bom o texto!!!Ainda bem que vc continuou ele!!xD

-E2R- disse...

Oi Deia!! Ficou mto bom, pra variar...

Acho que estou finalmente de volta...

Estou pensando no que vc me disse sobre a menina sentada na porta da loja de bijouterias...também fiquei curiosa pra saber o que ela ve todos os dias...rs...

Como esta a vida de Au pair?

beijos, nani...