Quando a vi pela primeira vez, no canto da sala de aula, não soube dizer se era um menino ou uma menina. Seu cabelo castanho era curto, com uma franja já comprida, que ela tentava manter atrás da orelha. O formato de seu maxilar deixava seu rosto quadrado e embora ela já tivesse 13 anos, não havia nada ali que indicasse uma menina: enquanto as outras se enchiam de maquiagem e modelavam o uniforme de acordo com as novas curvas de seus corpos adolescentes, ela parecia um cabide onde seu uniforme ficava pendurado e sequer tinha furos nas orelhas. Era um fantasma naquela escola. Ninguém lhe dirigia a palavra, a menos que fosse para insultá-la. Nesse ponto, éramos parecidas. Eu também não era nada popular.
Nos falamos pela primeira vez numa aula de Educação Física, quando o resto da turma resolveu nos excluir do time de vôlei. Ela estava sentada na arquibancada, com a cabeça apoiada nos joelhos, completamente alheia às meninas na quadra, com o olhar distante. Eu estava sentada na outra ponta, prestando atenção no jogo e torcendo para que alguém enjoasse e me desse uma chance de jogar, mas ninguém enjoava. Na verdade, o que uma delas fez foi jogar a bola em mim “Acorda, baleia!”. Todas pararam o jogo para rirem tão alto a ponto de fazerem com que os meninos, que jogavam na quadra ao lado, percebessem o que tinha acontecido e também começassem a rir. Senti tanta vergonha que saí de onde estava e fui para o canto da arquibancada, longe do alcance de outra bolada. Sentei-me duas fileiras abaixo dela, com uma vontade incontrolável de chorar, mas sabia que não podia fazer isso, ou seria motivo de piada por mais um mês. Se elas percebessem minha vulnerabilidade, eu nunca mais seria deixada em paz. Ouvi alguém dizer “Não vale a pena”. Olhei para o lado e não vi ninguém, então olhei pra trás, a única pessoa ali era ela, que continuava virada olhando para o outro lado. Se realmente ela tivesse falado comigo, deveria ao menos ter olhado na minha direção. Mas não olhou. Fiquei encarando-a por alguns minutos, observando suas mãos pequenas, cruzadas, seu tênis sujo, a barra da calça dobrada três vezes, pois o uniforme era enorme. Fiquei pensando que meu uniforme era apertado, mas não pelo mesmo motivo das outras meninas, mas sim porque eu era gorda, e não existia nada pior naquela escola do que ser gorda. Como ela não disse nada, perguntei “Você falou comigo?” e ela apenas fez que sim com a cabeça. Por um breve momento, senti uma solidão profunda. A única coisa que eu queria era ter uma amiga. Então, num gesto de desespero, levantei-me timidamente e, com a cabeça baixa, sentei-me ao seu lado. Ela virou-se para o meu lado e eu pude perceber um sorriso num rosto quase todo coberto por uma franja. Ela jogou o cabelo para trás e eu pude ver q ela tinha olhos amendoados, um nariz fino e dentes grandes, mas não era dentuça, eram dentes bonitos. Eu desviei meu olhar, tive medo de que ela visse que eu estava prestes a chorar. Tentei esquecer as idiotas da quadra e voltei a olhá-la:
- Qual é o seu nome? – perguntei
- Fernanda – o Fernanda saiu meio “Ferrrnanda”, e pude perceber que ela não era dali.
- Ah...o meu é Joana.
- Eu sei.
- Como? Eu nunca te falei...
- Ah...estudamos na mesma sala...
- Mas eu não sabia o seu.
- Eu sou observadora.
- Ah...
Ficamos em silêncio e ela voltou a olhar para o outro lado. Eu já estava me preparando para levantar e ir embora quando ela disse:
- Tá vendo aquela árvore ali, perto do portão?
Ela voltou a olhar para o outro lado e eu respondi, já impaciente;
- Sim, o que tem?
- Ali tem um casal de canários namorando. Faz dias que estão ali.
- Como você sabe que é um casal? – eu não entendia nada sobre pássaros, não saberia fazer uma pergunta inteligente. Ela virou-se para mim e deu um sorriso de canto de boca que por um momento achei arrogante, mas ela tinha um olhar tão doce que era capaz de desfazer toda sua indiferença;
- O macho canta. A fêmea só faz uns barulhinhos.
Pensei em perguntar como é que ela sabia tanto de pássaros, mas tive medo de ser uma pergunta idiota, de ela me responder dizendo que é um conceito básico de biologia, então não disse nada. Ficamos em silêncio, observando o casal de passarinhos na árvore até dar o sinal. Voltamos para a sala: cada uma em seu lugar, cada uma isolada em seu mundo particular.
No dia seguinte, cheguei na sala de aula e estava tirando minhas coisas da mochila quando olhei para trás e vi que ela estava me olhando. Sorri, acenando um oi, que ela respondeu com um sorriso sem graça. No outro dia, ela estava sentada na carteira ao lado da minha.
A professora de Geografia deu um questionário para ser respondido em dupla. Eu já estava acostumada a fazer minhas coisas sozinhas e comecei a copiar as perguntas, quando percebi que ela estava arrastando sua carteira para perto da minha. Fiquei feliz por ter alguém com quem compartilhar o terror que era a sétima série e aos poucos a Fer e eu fomos nos tornando inseparáveis, estávamos nos tornando amigas.
Passávamos o intervalo juntas e as aulas de Educação Física deixaram de ser um tédio. Logo eu já não dava a mínima para o time de vôlei, Fernanda e eu ficávamos lendo contos durante a aula, em voz alta. Eu lia gaguejando; ela parecia atriz. Às vezes preferia que ela lesse tudo, era tão bom ouvi-la falar, dar vida às personagens. Eu ficava imaginando todas aquelas cidades e pessoas daqueles livros (todos dela, por sinal, eu não tinha nenhum). De vez em quando, as idiotas do time de vôlei chamavam a gente de esquisitas ou de outros nomes piores, mas não importava. De onde estávamos, elas eram insignificantes.
Numa tarde depois da aula, ela foi pra minha casa e ficamos no meu quarto, comendo brigadeiro de colher e fazendo testes de revistas para adolescentes. Um deles era “Você beija bem?”. Para descobrir, bastava passar batom na boca, beijar uma folha de papel e depois ver em qual dos beijos desenhados na revista o seu se encaixava. Peguei um batom da minha mãe e dei pra Fernanda. O batom vermelho fez com que a boca dela se destacasse em seu rosto branco, fazendo-a parecer uma pintura. Passei o batom com todo cuidado, mas mesmo assim acabei borrando a boca. Reclamei que meus lábios não tinham contorno, ela riu da minha cara emburrada com a boca borrada, aproximou-se e passou o dedo pelos meus lábios, para tirar o excesso de batom. Senti uma coisa estranha, ninguém antes tinha chegado tão perto do meu rosto, muito menos tocado meus lábios, e não sei se por causa da região do rosto, mas tive uma sensação desconhecida, parecida com cócegas, mas não era incômoda. Era boa. Ela terminou de corrigir o batom borrado e sentou-se de novo na cama com as pernas em formato de borboleta (coisa que minhas pernas de tronco de árvore nunca me permitiram fazer) e ficamos nos olhando em silêncio. Tinha alguma coisa estranha no olhar dela, algo que eu não sabia distinguir. Então ela piscou como alguém que voltasse de um transe, pegou a folha de papel e estendeu-a para mim:
- Você primeiro.
Peguei a folha de papel e antes de finalmente encostar meus lábios, dei uma última olhada pra ela, que me olhava ansiosa. A marca circular e vermelha fixou-se no rodapé da folha branca. Não parecia um beijo, parecia um pequeno círculo feito de batom. Prova irrefutável de que eu nunca havia beijado na vida. Dei a folha para ela que deixou sua marca na parte oposta. A dela era diferente. Segundo a revista, ela sabia exatamente como beijar e eu, “dava bitoquinhas do tipo que se dá em irmã”. Mas em momento algum ela riu ou zombou de mim. Ela sequer me perguntou se eu já tinha beijado alguém. Disse apenas que aquelas revistas eram bobas, que nós estávamos muito acima daquilo, e passou o braço nos lábios, manchando o rosto branco de batom, fazendo-me rir quando eu pensei que fosse chorar.
À noite, quando ela já tinha ido embora, não sei bem por qual motivo, dobrei a folha ao meio, encostando uma marca de batom na outra.
13 Reasons Why & Suicide Awereness
Há 7 anos