segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
Bolo de Chocolate
A excitação preguiçosa dessa época do ano se reflete nas roupas e nos sapatos dos outros. Eu queria muito poder vestir uma leve regatinha branca, uma saia de um tecido que parece chita (mas que muda de nome de acordo com a pessoa que o está usando), uma sacola de pano no lugar da mochila preta e um chinelinho de dedo. Talvez eu até amarasse alguma coisa no tornozelo. Só pra enfeitar. Se eu fechasse os olhos e me esforçasse um pouco, poderia até sentir o cheiro salgado da praia...mas o litoral não foi feito para pessoas como eu, então eu continuo aqui, vestindo minha calça jeans (que de tão apertada só intensifica o calor), minha blusa preta (que ainda tem um top por baixo, também preto) e calçando meu All Star que já está tão velho que desconfio estar me causando joanetes precoces, mas não tenho dinheiro pra comprar outro tênis e meus pés são nojentos demais pra serem exibidos num chinelo.
Já que antecipar o verão não me ajuda em nada, pois ele só me incomoda, tento me distrair com o que é meu inimigo ao mesmo tempo que é a única coisa que me satisfaz: comida. Doce, nessa ocasião.
Procurei um lugar em que meu crime fosse anônimo e o único que encontrei foi a escadaria da História. Procurei o degrau que julguei ideal (abaixo da sombra noturna de uma árvore) e abri a mochila lentamente. Desembrulhei com cuidado o bolo de chocolate, me esforçando para não deixar pistas em minhas roupas e mãos. Olhei-o com algo muito próximo da paixão: era um bolo de chocolate, recheado com coco e um creme gelado (também) de chocolate.
Na primeira garfada me assustei com o barulho metálico de algum objeto se batendo contra o corrimão da escada. Tentei ignorar, mas ele voltou a acontecer e agora era acompanhado por malditas vozes alegres. Fiz um tremendo esforço para me tornar invisível. O mesmo que faço quando algum comentário me magoa ou quando viro motivo de piada. As três vozes passaram por mim e uma delas disse “bolo de chocolate é uma delícia, né?” enquanto as outras riam aquelas risadas abafadas que nos fazem sentir humilhados e ridículos justamente por serem um misto de escárnio e pena. Na minha opinião, isso é mais cruel que muitos outros xingamentos.
Eu poderia ter pensado em várias coisas legais pra dizer e talvez até me tornasse interessante para eles. Quem sabe não seria convidada pra tomar uma cerveja e poderia até fazer parte do grupo. Mas sou tímida. E além de tímida, estava acuada, então não consegui pensar em nada além de uma resposta infantil, já que desde sempre aprendemos que não oferecer o que se come é falta de educação: “Você quer?”. A pergunta foi involuntária e automática, como um pé que chuta ao receber uma pancadinha no joelho. Eu não sei o que a voz respondeu, mas as três saíram rindo e no meio daqueles sons desconexos eu só conseguia distinguir o “bolo de chocolate”. As vozes atravessaram a rua e encontraram outras que se juntaram ao coro de risadas e “bolo de chocolate”. Eu ainda as ouvia mesmo quando elas já tinham sumido, em direção ao CRUSP.
Quando eles estavam por perto, tive a sensação de ter aumentado de tamanho, sendo impossível que eles não me notassem; quando foram embora, senti uma estranha dor no estômago e me senti diminuta, indefesa e insignificante. Quando a dor passou e voltei a pensar com clareza, já tinha comido todo o pedaço do bolo. Se não fosse pelas vozes ecoando na minha cabeça, teria até esquecido que ele era de chocolate.
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
Manu
Ela apareceu na rua do meu amigo, que por um milagre ou por consciência, me ligou para saber o que fazer com aquele filhote abandonado. Sua barriga era enorme e seus olhos cinzentos estavam cobertos de remelas. Dei-lhe um banho, comida e água e tentamos ligar para os pet shops disponíveis, para saber se alguém poderia adotá-la, mas eu tinha esquecido que ninguém quer um filhote de vira-lata, provavelmente cheio de vermes e fêmea, ainda por cima. Um dos veterinários para quem liguei sugeriu que eu chamasse o Centro de Zoonoses. Não acreditei em sua sugestão e perguntei "Você quer dizer a Carrocinha?" "Sim." "Mas você sabe que eles vão matá-la, não sabe?" "Sim, sei." Desliguei o telefone e parei de oferecer a cachorrinha em sacrifício.
No dia seguinte, meu amigo me ligou, dizendo que tinha ligado para mais 7 pet shops e ninguém podia/queria ficar com ela. Ainda por cima, sua mãe disse que se chegasse em casa e encontrasse um cachorro, o mataria a pauladas. E o pior é que era verdade, pois ela já fez isso antes.
No fim das contas, ela veio parar em aqui casa e ganhou um nome, um lar temporário, amigos temporários e uma vida temporária. Engordou, ganhou pêlos novos e brilhantes, cresceu , conquistou seu próprio espaço na garagem e nos nossos corações. Sempre que eu chegava da faculdade, era recebida pelo imenso Jack e por aquela figurinha preta, que surgia por entre os carros na garagem.
Mas nas últimas semanas ela passou a aparecer cada vez menos, ficando sempre deitada no puff do Jack. Às vezes abanava o rabo, mas não vinha me receber. Com o passar dos dias, ela se mexia cada vez menos até parar de comer. Minha mãe começou a alimentá-la com soro caseiro e ela parecia estar melhorando. Mas ontem à noite, quando cheguei da faculdade, o Jack estava desesperado na garagem escura, tentando me dizer alguma coisa. Como as luzes estavam apagadas, não consegui encontrar a Manu, mas o Jack me levou até ela. Coloquei a mão em sua cabeça apenas para me certificar de que ainda estava quente e subi para o meu quarto. Alguns minutos depois, comecei a ouví-la chorar. Fui até a garagem e a trouxe para o meu quarto. Minha mãe levantou e me ajudou a dar o soro com a seringa, mas ela parecia cada vez mais fraca. Trouxe-a para dormir em meu quarto e fazia carinho em sua cabeça a cada vez que ela chorava.
Às 4h30 da manhã tentei fazer com que ela tomasse mais um pouco de soro e foi só aí que percebi que, na verdade, ela estava inconsciente. Sua gengiva estava esbranquiçada, sua língua tinha encolhido dentro da boca, seus olhos estavam virados e ela já não tinha reflexos lógicos, embora chorasse e tentasse latir a cada vez que eu chamava seu nome. Seu batimento cardíaco acelerou-se e pensei que ela fosse morrer sufocada, mas logo seu coração começou a bater cada vez mais devagar. Tentei masseagar seu peito, na esperança de que seus batimentos cardíacos voltassem a um ritmo normal, mas tudo que senti foram batidas cada vez mais raras, até que seu coração parasse de bater por completo, ali, na minha mão.
Chamei minha mãe que logo ao vê-la, disse "já está morta", cobrindo-a com um pano e voltando a dormir. Eu voltei a massageá-la, na esperança de que ela pudesse voltar à vida e tive muita vontade de acreditar em deus, para poder pedir um milagre. Seus latidos cada vez mais frágeis e os espasmos que mexiam seus membros me davam forças para continuar tentando. Uma vez eu tinha visto num programa de televisão que em alguns velórios os cadáveres ainda se mexiam, causando pânico nas pessoas. Em mim só causava esperança. Desejei ardentemente fazer um curso de veterinária, para evitar que mais cachorros morram assim, não minha mão. De repente me senti tonta, comecei a suar frio, a sentir enjôo, não tinha forças para continuar de pé e achei que fosse desmaiar. Será que é essa a minha maneira de lidar com a morte? Será que é assim que me conscientizo? A verdade é que caí na cama e acordei sem a Manu no meu quarto. Não tive coragem de perguntar à minha mãe o que ela tinha feito com o corpo, mas imagino que tenha enterrado num terreno baldio próximo à casa da minha prima. Minha tristeza era tão exata e tão inquestionável que não precisou recorrer ao recurso das lágrimas. A morte é irremediável. Minha perda também. As lágrimas não dariam conta da tristeza que senti ao ter em minhas mãos um coração que, aos poucos, parava de bater. Também não acho que essas palavras darão conta de expressar meu sentimento de culpa e de impotência.
E eu só queria que ela fosse feliz...
domingo, 4 de outubro de 2009
Três cerejinhas?
Ela tentou conter a vontade de rir, como alguém que luta bravamente contra a tentação de um vício. E aquele era o pior de todos : se apaixonar. Disse a ela tudo que sempre neguei a mim mesma: o amor dá um outro rumo às nossas vidas, faz os problemas parecerem bobagens, altera a nossa percepção de tempo, de mundo, de espaço, é rejuvenescedor etc.
Talvez o meu papel de amiga exija que eu avise que, na verdade, o amor (seja lá o que isso quer dizer) é bastante traiçoeiro, egoísta e potencialmente destrutivo, mas seria crueldade. Ela parecia outra pessoa. Parecia estar feliz! Acho que ela tinha o direito de sentir isso. E no mais, quem sabe não é dessa vez que ela finalmente vai encontrar as três cerejinhas?
(Essa história de cerejinhas não é minha, é de uma música do Conor, Waste of Paint, em que ele diz "Will my number come up eventually? Like love's some kind of lottery, where you scratch and see what's underneath: it's 'sorry'...just one cherry...or 'play again'... get lucky!".).
Apesar da minha pessimista desesperança compartilhada com Conor Oberst, eu insisto em achar que o amor pode, sim, salvar vidas. Pelo menos a dela, pois eu não acredito em milagres. A verdade é que ver nela aquele tipo de sentimento que eu deixei de me permitir há tantos anos me deixou com saudades da vida de antes. Há quanto tempo eu não sou capaz de me apaixonar de verdade por alguém do meu ambiente escolar? Alguém real, que eu veja todos os dias? Talvez se isso tivesse acontecido na faculdade, eu não teria reprovado em Elementos de Linguistica...
Já considerei a hipótese de ter criado pessoas ideais e me corresponder com elas. Por isso nada acontece apesar de elas serem tão perfeitas. Mas essa é só uma das "alucinações" que surgem quando não tenho o que fazer.
Estou feliz por ela. Acho que quando a gente consegue se aproximar de alguém da forma como eu e ela tentamos nos aproximar uma da outra- especialmente nesse mundo louco -, somos quase capazes de sentir a mesma coisa. Se eu me esforçar um pouco, sou capaz de vê-la observando-o na sala de aula, com o sol entrando pela janela, com o barulho daquele passarinho da aula de literatura e das tardes de pv (ela sabe qual é). Sou capaz de sentir aquele típico frio na barriga, sintoma de que estamos vivas, a cada vez que ela o encontra, por acaso, no corredor. Sinto falta daquela crença de que todo dia será diferente e "quem sabe não é hoje que as coisas vão acontecer? "
Recentemente pensei ter encontrado minhas três cerejinhas, mas sempre aparece alguém que me rouba a terceira. Ou talvez eu tenha roubado duas de alguém...a gente nunca sabe.
Conversamos por uns 10 minutos na esquina do trabalho e cada movimento que ela fazia denunciava sua alegria, sua esperança. Foi aí que eu percebi que não importa quem somos, o que pensamos da vida, no que acreditamos...todos nós queremos a mesma coisa: amar e ser amado.
Mesmo eu, com todo o meu pessimismo, com toda minha conspiração, minha amargura, minhas teorias que tentam provar que o amor é mentira, tenho esperanças de mudar um dia. É aquela coisa de afirmar algo justamente por negá-lo em excesso. No fundo, eu também só espero amar e ser amada. E pior: espero que isso seja suficiente.
Jackie, se eu soubesse o que te dizer, como fazer ele gostar de você, acredite, seria a pessoa mais rica e bem sucedida do mundo. Mas eu não sei. Eu só acho que o amor é justamente caminhar sobre ovos no escuro. Mas acho que mais importante que a conquista em si é esse momento que você está vivendo. É sublime (conceitos kantianos via Pasta rsrs) ver o poder que a simples existência de uma pessoa pode exercer sobre nossas vidas. E ao mesmo tempo, é gratificante ver como o amor transforma vários aspectos de nossas vidas e, aos poucos, tudo se encaixa como um quebra-cabeça. Queria escrever coisas bonitas, coisas que te dessem coragem, inspiração, mas no momento meu coração anda muito fragmentado para esse tipo de coisa. O que posso fazer é desejar boa sorte. Afinal, o amor é mesmo uma loteria, né?
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
A meia e o sábado
A lembrança se foi antes que sentimentos incômodos pudessem ser retomados e eu segui com a inutilidade do meu sábado, sem saber ainda se continuaria a leitura de um livro ou se daria banho nos meus cachorros. Antes de conseguir decidir, me vi diante do computador fazendo qualquer coisa inútil na internet e mais uma vez lamentei minha mediocridade e senti pena do Graciliano Ramos e do seu profundo Infância, que agora se viam obrigados a disputarem minha atenção com um objeto tão frio quanto os tempos modernos que o criaram. Fui interrompida pelo toque da campainha e pela desobediente inquietude do meu coração Num movimento automático, tirei o pijama e procurei dar uma ajeitada no cabelo. Ao trocar de roupa, me senti tão fútil quanto aquelas mulheres do século XVIII que apertavam as bochechas para parecerem rosadas na presença de seus pretendentes.
Pude ouvir seus passos pelas escadas e mais tarde, sua voz jovial e delicada. Na tentativa de ignorar a estranheza da situação, liguei o rádio. Minha esperança era que as palavras desafinadas de Conor Oberst me dissessem o que fazer, me mostrassem qual caminho seguir. A música se misturava às vozes que vinham da cozinha e tudo que eu conseguia ouvir era um monte de ruídos ininteligíveis, pois ainda sem querer, queria prestar atenção nas duas coisas ao mesmo tempo. No curto silêncio que separa uma canção da outra, ouvi minha mãe perguntar "E você pretende se casar quando, L.?" Cada parte do meu corpo parou para ouvir atentamente à resposta, mas meus ouvidos foram inundados pela introdução barulhenta de Four Winds e por um momento cheguei a amaldiçoar Conor Oberst.
Desliguei o rádio, concentrei todos os meus esforços na criação de uma cara cínica, respirei fundo e testando a minha capacidade de parecer indiferente, disse ao espelho "Oi, L. Tudo bem?". Não me achei muito convincente, mas o constrangimento duraria apenas alguns segundos. E se alguma coisa me denunciasse, tudo que eu tinha que fazer era evitar aqueles olhos.
Ele estava sentado de costas para o corredor e antes de finalmente entrar na cozinha, observei com ternura aquela figura que durante muito tempo foi a alegria da minha vida. Contra minha vontade, um sorriso triste surgiu em meu rosto. Fechei os olhos, concentrei meus esforços na farsa e disse, sorridente, "Oi, L! Tudo bem?". Beijá-lo no rosto foi inevitável e eu senti mais uma vez a textura daquela pele tenra e quente. Ri por dentro. Algumas coisas nunca mudam.
(E Conor Oberst insistia em cantar em sua voz desafinada "Yeah, you still kiss me, but it's just on the cheek").
Fui até a sala, troquei algumas palavras com meu pai, coloquei água para ferver e voltei ao meu quarto. A atmosfera de desordem causada por aquela visita incorporava todas as minhas tentativas de provar que toda aquela preocupação era ridiculamente constrangedora e que não passava de um reflexo da ausência de eventos na minha vida.
L. e eu não temos filhos, mas temos um cachorro que desempenha muito bem esse papel, pois tem sido a principal desculpa para nossos diálogos seguros e vazios. Enquanto eu preparava o molho do meu macarrão, L. se encantava com todo e qualquer movimento daquele cachorrinho mimado e fazia questão de compartilhá-los comigo. Pousei minha mão sobre a cabeça do Mané e senti aquela mão quente que, sob a desculpa de agradar o cachorro, acabou envolvendo a minha. Não levantei os olhos. Tudo que eu via era aquela imensa aliança prateada. Puxei minha mão rapidamente.
A preguiça da tarde pós-almoço invadia cada canto daquele sábado de calor, e logo meu pai estava dormindo em seu quarto. Não sei onde minha mãe e irmão tinham ido, só sei que restaram apenas L. e eu na sala, resistindo bravamente à vontade de deitar no chão e dormir. Ele parecia extremamente à vontade, esparramado no meu sofá e me contando seus planos, enquanto eu, de pé, atrás do outro sofá, parecia um soldado que se crê protegido por uma trincheira. Se eu estivesse interessada em ilusão, poderia ir além dessa cena e dizer que ele estava de coração aberto, enquanto eu me fechava cada vez mais dentro de mim. Mas a verdade é que ele estava sendo apenas sociável, uma habilidade que invejo muito.
Cada fragmento de conversa evidenciava mais e mais as diferentes pessoas que havíamos nos tornado. Seus planos eram absolutamente incompatíveis com os meus e eu experimentava uma estranha sensação de alívio. Quando eu já estava quase convencida de que todo aquele amor tinha se perdido para sempre em algum buraco negro do passado, ele disse, com um olhar distante, "Acredita que eu ainda tenho aquela meia?". Eu sabia do que ele estava falando, mas precisava de tempo para pensar em uma reação, então perguntei "Meia? Que meia?". Ele se limitou a responder "Aquela meia...que o Rex rasgou, não lembra?". É claro que eu lembrava. O "acidente" aconteceu há anos, na noite em que tivemos nossa primeira briga como namorados. Estávamos na garagem de casa e eu não lembro qual era o motivo da discussão, mas a questão é que, naquela época, L. tinha o hábito de andar de um lado para o outro quando estava nervoso ou irritado. Meu cachorro Rex ainda não tinha se acostumado à ideia de que agora eu tinha um namorado, então às vezes se enfiava entre L. e eu no sofá, ou rosnava sempre que ele parecia estar planejando algum movimento em falso. Já cheguei a pensar que o Rex tinha sido treinado pelo meu pai para garantir que sua única filha não caísse na conversa mole de qualquer rapazinho bonitinho. Independente dos motivos, Rex estava sempre ali, pronto para me defender. E naquela noite não foi diferente: enquanto L. reclamava, falava rápido e andava de um lado para o outro, Rex aguardava o momento certo para sair debaixo do carro e morder aquelas pernas finas que desfilavam à sua frente. E foi assim que a tal meia acabou rasgada. Aquela lembrança fez com que compartilhássemos um riso confidente e eu acabei aprendendo que pode até ser possível deixar uma pessoa, mas nem sempre é possível tirá-las de nós.
L. decidiu ir embora antes que o "encanto" passasse de vez. Ao chegar na garagem, lembrou-se que havia deixado a chave do carro na cozinha e subiu correndo para buscá-la. Voltou ofegante, a escada parecia não ter fim. Disse que seu coração estava disparado e pediu que eu colocasse a mão em seu peito e o sentisse, mas acho que percebeu o erro que estava cometendo, pois mudou de assunto rapidamente. Mesmo depois de todos esses anos, alguns resquícios do que um dia chamamos de amor insistem em aparecer para nos confundir, constranger, desarmar.
Abri o portão e quando beijei seu rosto ao me despedir, fui surpreendida por um abraço intenso, apertado, possessivo. Cheguei a pensar que ele queria me dizer alguma coisa e que na esperança de que as palavras surgissem milagrosamente, me prendeu em seus braços. Tentei ver em seus olhos as palavras que sumiram, mas não tive coragem de encará-lo.
No fim, ele disse "Até mais, A. Até um dia" e entrou em seu carro, em direção àquela cujo nome está gravado em sua aliança. Duvido que ela seja capaz de ler o que está escrito naqueles olhos ou de ouvir o que ele diz com o coração.
sábado, 18 de julho de 2009
Primeiro post como au pair
Após uma sexta-feira de alegria, esperanças frustradas, mau humor, tristeza, lágrimas, raiva, acordei às 08h20 de um sábado com minha mãe no quarto, dizendo que hoje iríamos fazer minha inscrição no programa. A loja só abria às 10h e ela já estava me azucrinando às 8h. Tentei voltar a dormir e acordei com suas reclamações "parece que essa menina morreu e esqueceu de deitar".
Levantei, tomei café, ajudei meu pai com a limpeza da sala e às 10h30 liguei na agência. Combinei minha visita e avisei minha mãe. Hehe, naturalmente, ela não ia mais. Na cabeça dela, às 10h ela tinha que estar lá e não levantar da cama. Fiquei muito brava e triste ao mesmo tempo. É meu último fim de semana de "férias" da faculdade, eu queria dormir até tarde! Além disso, queria que ela fosse, pois é uma decisão importante pra mim. Depois de muita discussão, decidi procurar alguém pra ir comigo. Naturalmente, a primeira pessoa que me veio à mente foi o Kléber, mas sua mãe atendeu e disse que ele estava dormindo. Segunda tentativa: Jacque "pô, deia, foi mal...mas eu vou sair". Tudo bem. Terceira: Ceci - não atendeu. Assim como a Valéria e o Dudu. Nesse meio tempo também liguei para o Rodrigo, mas ele também tinha o que fazer. Comecei a pensar que todo o problema seria resolvido se eu tivesse um namorado e voltei à mesma tristeza da sexta feira, pensando no quanto eu seria menos solitária se tivesse um namorado. Chorei de raiva, mas decidi ir mesmo assim. Na última hora, liguei para o Kléber mais uma vez, afinal, ele era minha única esperança. Na primeira vez, ele não atendeu; na segunda, atendeu e desligou. Na terceira tentativa uma voz de sono atendeu "aaaaloooo...". Apesar de ele ser meu amigo há eras, fiquei sem graça e pedi desculpas por estar incomodando. Reclamei que não tinha ninguém pra ir comigo e que ele era minha última esperança. Ele reclamou um pouco (naturalmente), mas foi comigo, como sempre (eu sempre posso contar com ele).
A agência da STB era pequena e cheia de gente. Uma moça me atendeu e me pediu pra preencher uma fichinha. Depois veio uma outra moça fazer uma entrevista em inglês. Eu me lembro que ela insistiu bastante na questão da religião. Perguntou tanto que eu tive que dizer com todas as letras "No, I don't believe in God"...Não satisfeita, ela perguntou "But would you go to the church with the family" e eu disse "Yes, I don't mind...it doesn't mean anything to me anyway...it would be a job just like any other". Ela também me perguntou algumas vezes se eu tinha namorado, como era meu relacionamento com a minha família...quando ela me perguntou o que eu gostava de fazer, eu respondi "Reading" e ela "ok...and during the day?" " I read, watch some movie..." e ela "ok...and during the night?" "I read some more". hauahauah. E é verdade, eu leio mesmo! Mesmo que sejam coisas obrigatórias pra faculdade, não há um fim de semana em que eu não leia nada. Depois ela me fez responder 75 questões bobas, geralmente sobre o meu comportamente diante de situações de stress etc. Em seguida, fui atendida pela primeira moça e quando ela leu que eu disse que não tenho namorado, ela insistiu "Vc não tem mesmo namorado?" "Não..." "Aquele rapaz ali não é seu namorado?" "Não...". E tudo isso só pq o Kléber foi comigo e estava segurando minha bolsa. Pensando agora, eu acho que oq o Kléber fez é bem a coisa típica de namorado. Qq outra pessoa tem outras coisas pra fazer no sábado, as pessoas não ficam à nossa disposição. Geralmente, nós somos prioridade para os namorados, não para os amigos. Mais uma vez pensei que eu gostaria de ter um namorado, mas por um lado é bom, pelo menos não vou deixar ninguém aqui.
Agora eu tenho uma papelada aqui pra preencher e um monte de coisinhas pra fazer em 15 dias. Inclusive tirar meu passaporte!!!
Ah, sim! Fora os trabalhos das minhas falsas férias!
Bom, é isso! Fiquei tempo demais lendo o blog dos outros que acabei esquecendo o que tinha pra falar :S Tanto é que comecei a escrever aqui às 23h07 e to terminando às 02h50 rsrs.
segunda-feira, 6 de julho de 2009
Júlia
O relógio marcou 15h05. Ela estava atrasada. Por cima das casas, da janela do meu quarto, observava a rodoviária. A tarde era quente e o nada parecia tremer com o calor. Meu coração palpitava indecentemente, mas minha cabeça tentava conter a vontade de descer e esperar por ela no terminal. E eu poderia, se quisesse. Ela não me reconheceria, mas tive medo de que meus próprios sentimentos me denunciassem e eu não conseguisse impedir que meu olhar traiçoeiro dissesse “aqui estou”. Se isso acontecesse, esses mesmos olhos teriam que ver um amor tão puro e verdadeiro se desmanchar à sua frente, dando lugar à decepção e a um ódio magoado. Minha perna não parava de tremer. Era sempre assim quando me via numa situação de ansiedade. Lembro quando estava na escola e tinha escrito em minha perna a cola para uma prova, mas não consegui utilizá-la porque não parava de tremer. Ela sentia a mesma coisa quando nervosa, e essa foi uma das muitas coisas que tínhamos em comum e fez com que nos sentíssemos duas pessoas que foram encontradas em meio a um mundo de estranhos. Por que eu deixei que ela viesse até aqui? Durante todos esses anos consegui mantê-la distante sem que isso me custasse muito trabalho. Mas sua insistência libertou em mim algo que eu jurava não existir, algo que à custa de muito esforço eu sufocava em meu interior, que eu buscava de todas as formas silenciar com falsos moralismos, com idéias religiosas nas quais eu nunca acreditei de fato, e acima de tudo, com o medo da reprovação de meus pais, do olhar de vergonha de minha avó, do afastamento de todos os meus amigos.
Contra todos os meus esforços, seu amor ia aos poucos encontrando fendas em mim, fraquezas, e se estabelecendo dentro de tudo aquilo que eu era. Quando me dava conta, estava me acabando de ansiedade, esperando por uma carta sua, sentindo um misto de vazio e ódio quando ela não chegava. Certa vez ela me disse que entendia que eu não a amava, que sabia que eu era gay e não poderia ficar com ela, mas mesmo assim, ela queria me ver apenas uma vez, saber que eu era real. Depois, se vestiria de preto e se denominaria viúva “Seria interessante, não, Júlio? Uma viúva precoce. Bastante romântico.” Sim, realmente, seria bastante romântico. Mas ela sequer imaginava o quanto estava enganada...
O fato é que sua fé no amor acabou me atingindo de uma forma que, num impulso de coragem irresponsável, as letras tortas por causa das mãos trêmulas, escrevi o seguinte bilhete “Tudo bem. Venha me ver no próximo feriado. Meu endereço é o do envelope” e pela primeira vez deixei de morar na caixa postal, como ela dizia, e passei a ter uma casa comum, como todas as pessoas, um apartamento 23 de um quarto andar.
E agora lá estava eu, num dos quartos desse apartamento. Uma de minhas unhas foi roída ao ponto de começar a sangrar, e então eu vi ao longe aquele ônibus de viagem, aquele que só passava duas vezes por dia e que vinha sempre de algum lugar bem distante. Dificilmente se atrasava em dias de sol, mas hoje, só para prolongar a ansiedade de meu coração, atrasou-se quase 20 minutos. Minha mente se achava parada na janela, enquanto meu corpo desligava-se de mim e descia correndo pelas escadas. Sabia que ela nunca mais me perdoaria, mas eu também não me perdoaria se não a visse pelo menos uma vez. Corri por entre os carros e encostei-me à parede da plataforma. Minhas mãos suavam e o frio na barriga chegava a causar náuseas. O ônibus parou na plataforma. Estava tão ofegante quanto eu. A cada passageiro que desembarcava, o mundo parecia me engolir e sufocar e eu queria ter o poder de simplesmente fechar os olhos e voltar para a segurança do meu quarto, mas não conseguia me mover. Finalmente, quase uma das últimas pessoas a descer, veio ela. A blusa amarrada na cintura – provavelmente fazia frio em São Paulo – a expressão de cansaço de quem passou oito horas em um ônibus num calor de 27º, o olhar tristemente perdido, de quem não sabia onde estava e nem porquê. Desceu. Parou na plataforma, abriu a mochila e pegou a garrafa com água. Bebeu um pouco. A água escorria-lhe pelo pescoço e desaparecia no decote de sua blusa. Meu corpo arrepiou-se e minha mente foi inundada de pensamentos que iam do amoroso ao sujo. Guardou a garrafa na bolsa, colocou-a no chão, e olhou em volta, desolada. Não havia nenhum sinal de um garoto alto, magro e de cabelos pretos e compridos. As pessoas iam e vinham, enquanto ela permanecia ali, imóvel. Finalmente consultou o relógio e seus lábios se contraíram numa expressão de decepção. Deu de ombros e ergueu as sobrancelhas. Sentou-se no banco para procurar o número de telefone que eu havia lhe dado. Recebeu a mensagem de que o número chamado não existia. Era falso. Cansada e vencida, deixou-se cair no banco, fatalmente a meu lado. Os olhos distantes, marejados. Eu quis dizer-lhe a verdade, mas alguma coisa mais forte me silenciava, alguma coisa que parecia ter arrancado minhas cordas vocais, me impedindo de dizer qualquer coisa. Qualquer coisa. Ainda que fosse uma outra mentira. Levantou-se, foi até o guichê e pude ouvi-la dizer “A que horas sai o próximo ônibus para São Paulo?”. Apanhou a carteira, pagou pela passagem e sentou-se em outro banco. Partiria dentro de algumas horas. De repente, vi que ela me olhava com profunda insistência, seu olhar acusativo e esperançoso desafiava minha audácia. Não sei como ela pôde ter desconfiado, e foi aí que percebi que não foram necessariamente meus olhos que me denunciaram, mas minhas pernas, que tremiam incessantemente, sem que eu me desse conta. Caminhou em minha direção. Eu me sentia desaparecer no banco:
- Moça, por favor, qual é o seu nome?
Meu coração gritava “Júlia”, mas minha boca estava preparada para outra mentira:
- Débora.
Ela não acreditou:
- Débora? Tem certeza de que não é você o Júlio?
- Desculpe, moça. Mas não sei do que você está falando... – embora meu cinismo fosse uma de minhas características mais peculiares, fui covarde o suficiente para não olhá-la nos olhos. Por alguns instantes ficou parada diante de mim, incrédula. A boca aberta e a cabeça visivelmente confusa. Em seguida voltou ao outro banco e chorou. Não sei dizer se chorou por não ter me encontrado ou se aquilo era o resultado decepcionante de me conhecer. Acho que nunca saberei... A verdade é que eu voltei para a janela do meu quarto e lá fiquei até às 17h45, horário de saída do ônibus para São Paulo. Mesmo longe pude vê-la arrastar-se para dentro do ônibus. Parecia outra pessoa, alguém que perdeu a vida, mas conservara as funções do corpo, e cheguei a ficar realmente preocupada, pensando se ela conseguiria chegar em casa sozinha. O ônibus partiu e ela foi embora. Eu sabia que era para sempre. Não se deu o trabalho de me escrever para tirar satisfações. E também eu não escrevi para pedir desculpas. O tempo passou e deve tê-la curado de um amor tão proibido. Mas parece que algumas pessoas são imunes ao tempo, afinal, até hoje me pergunto se seria possível que em algum lugar de seu íntimo, de seu instinto, em seu amor imenso e acolhedor, ela poderia amar uma mulher.
sábado, 25 de abril de 2009
Os últimos dias
Acho que o Pasta tinha razão quando disse que a linguagem prende e nivela os sentimentos, porque sentimentos são para ser sentidos, não ditos. Quando a gente tenta transformar os sentimentos em palavras, ele se dissolve em falsas ideias e a gente perde o principal: aquilo que sentiu.
Quero fazer meu intercâmbio logo. Quero sair daqui, ver a neve e as folhas de outono. A ideia de ficar um ano todo sem ver minha mãe e meus cães me assusta um pouco, mas mais cedo ou mais tarde eu teria que crescer... e isso já está acontecendo mais tarde.
Odeio quando sonho com a pessoa que gosto (embora vá dormir torcendo pra isso, já que é o mais próximo que posso ter) porque depois acordo com a sensação de ter perdido algo pra sempre e ter sido feita de boba por mim mesma. Ele certamente não pensa em mim (se é que sabe quem eu sou), mas eu gostaria de conversar com ele. Enquanto imaginava as coisas que poderíamos fazer juntos, pensei que ele poderia me ensinar a tocar violão e imaginando a cena, decidi que está na hora de parar de roer as unhas (vamos ver até quando eu vou aguentar). Queria ter tempo pra ser outra pessoa e quando encontrá-lo novamente (se é que isso vai acontecer) ser uma pessoa dígna de sua atenção. Nenhum cara fantástico como ele se interessaria por uma garota feia, gorda, de cabelo feio, espinhas, pés horrorosos, mau gosto pra roupas e que ainda rói as unhas. Não adianta partir pro lado da minha suposta intelectualidade: ele é um milhão de vezes mais inteligente que eu.
Tive uma ideia!!! Quando eu escrevi sobre o sonho que tive com o garoto do ônibus e tal, ele tinha um olhar de alguém que parecia ter uma alma muito mais velha que a minha e é exatamente isso que eu sinto quando me lembro da única vez em que vi o garoto perfeito que, de alguma forma, reencontrei. Se eu acreditasse em deus, diria que isso poderia ter sido um sinal. Como eu não acredito, digo que é uma cínica associação entre imagens oníricas que eu mesma crio, mesmo que subconscientemente. Se tem uma coisa que tem deixado meu olhar distante e me feito sorrir contra a vontade nos últimos dias é a lembrança do jeito que ele me olhou quando percebeu que eu não conhecia Goethe. Era um olhar de alguém que estava dizendo "eu sei que você está mentindo, mas isso não importa". Acho que eu não acredito em deus porque toda vez que me apaixono por alguém santifico essa pessoa, como se ela passasse a ser meu deus particular. Eu sempre acho que ela sabe de muitas coisas que não sei, que apareceu na minha vida por algum motivo, que vê algo em mim que eu mesma não vejo, mas, na verdade, ela é sempre uma pessoa comum, normal, muitas vezes legal demais (e por isso fala comigo) e tudo que eu crio em torno dela são práticas unilateralmente sonhadoras.
Anyway...pra quem não queria falar a respeito, já falei demais.